"Grande parte dos problemas que os pais têm na utilização da Internet e das novas tecnologias tem a ver com a ignorância. Os pais que são utilizadores frequentes são os que têm menos problemas com os filhos na utilização"
Passam horas a fio
a jogar online. Não comem, não dormem, nem vão à casa de banho. Há crianças que
vão com sono para as aulas, adolescentes que faltam à escola para jogar. Os
pais chamam-nos para jantar e eles pedem sempre mais cinco minutos que se transformam
numa hora. Por vezes os pais desesperam, desligam a ficha e os filhos reagem de
forma agressiva. Há quem peça aos pais para lhes levarem o jantar num tabuleiro
ao quarto e outros que não conseguem passar nem dez minutos sem ir ao
telemóvel.
Estas são apenas
algumas histórias relatadas ao PÚBLICO por psicólogos que estiveram no Simpósio
Internacional sobre o impacto das novas tecnologias no desenvolvimento das
crianças, nos jovens e nas famílias, promovido pelo CADIn – Centro de Apoio ao
Desenvolvimento Infantil. À margem do encontro, procuramos também perceber de
que forma pode afectar o desempenho escolar, o comportamento e a atenção das
crianças.
A psicóloga clínica
Rosário Carmona e Costa, do CADIn, explica que para diferentes situações, como
dificuldades de aprendizagem, ansiedade, problemas sociais e de sono, se tem
vindo “a encontrar muitas vezes um denominador comum que é o uso excessivo da
Internet, das redes sociais e dos jogos virtuais”.
O CADIn tem
desenvolvido trabalho nesta área através do projecto CADInter@tivo e, entre
outras actividades, promoveu sessões de sensibilização gratuitas nas escolas.
Foi durante esses meses de “digressão” que Rosário Carmona e Costa se apercebeu
como “estas questões estão, de facto, a afectar o dia-a-dia das crianças e
jovens” e também dos pais que “parecem não saber o que fazer”.
Recolheu inúmeros
testemunhos como o de um menino do 6.º ano que contou que o irmão, que não
largava o computador, pediu ao pai que passasse a deixar o jantar num tabuleiro
à porta do quarto – o pai acedeu. Ou crianças do 5.º ano com queixas de dores
nos olhos, nas costas e na cabeça, sinais que podem ser de alerta para um uso
abusivo do computador. Mas também há outras que contam que os pais lhes dizem
para largar o computador, quando eles próprios estão no Ipad. Uma mãe
“angustiada” ainda partilhou com Rosário Carmona e Costa que não conseguia que
a filha guardasse o telemóvel no bolso das calças nem por dez minutos enquanto
jantava.
Os projectos de
formação, sensibilização, e informação, desenvolvidos no Núcleo de Intervenção
no Uso da Internet e das Novas Tecnologias do CADIn, passam, entre outros
objectivos, por realizar seminários de formação e criar uma rede nacional de
formadores para sensibilizar e informar pais e educadores.
Conhecer a ferramenta
Jean-Pierre Dèmage, do serviço de apoio a dependentes de Oise, França,
alerta para o facto de as crianças se tornarem rapidamente especialistas no uso
da Internet e do computador em comparação com os pais, o que, numa cultura em
que tradicionalmente são os mais velhos que ensinam e transmitem conhecimentos
aos mais jovens, é uma mudança que tem impacte na família.
“Grande parte dos
problemas que os pais têm na utilização da Internet e das novas tecnologias tem
a ver com a ignorância. Os pais que são utilizadores frequentes são os que têm
menos problemas com os filhos na utilização". É importante que os pais
estejam a par dos sítios por onde os filhos andam.
É o mesmo com a
televisão, os pais devem saber que programas é que eles vêem, nota o psiquiatra
e director clínico do CADIn, Carlos Filipe, ressalvando que se os pais passam
horas a ver telenovelas ou nas redes sociais não se devem espantar se os filhos
fizerem o mesmo.
Na apresentação que
fez, também Cristina Ponte, da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora do
projecto EU Kids Online em Portugal, defendeu que os pais devem estar
activamente envolvidos nas actividades online dos filhos e que adultos que usam
a Internet com mais frequência sentem-se mais confiantes para orientar as
crianças.
O que CADIn propõe
não é um “discurso fundamentalista” contra as novas tecnologias, mas sim
encontrar um “equilíbrio”, diz Rosário Carmona e Costa. Claude Vedeilhie, do
Centro Hospitalar Guillaume Régnier, em Rennes, França, corrobora esta ideia de
que as novas tecnologias, particularmente a Internet, são objectos neutros, não
sendo em si mesmos problemáticos. A questão é o modo como são usados.
Carlos Filipe frisa
que a Internet pode ser “extremamente atractiva e sedutora”, mas os pais e
professores precisam de conhecê-la para ajudar as crianças e os jovens a usá-la
“de forma prevenida”.
Quanto às horas que
as crianças e jovens passam diante do ecrã, o mais importante é perceber se
está a roubar tempo a outras actividades: “Não é tanto estarmos no computador,
mas o que deixamos de fazer. Senão estivesse no computador, estaria a fazer o
quê?”, questiona Carlos Filipe, acrescentando que é nessas alternativas que os
pais devem apostar. Ler, conversar, ir ao cinema, ao teatro, praticar desporto
são actividades que devem fazer parte do vocabulário familiar.
Fazer desporto e estar com os amigos
O neuropediatra Pedro Cabral, que também participou no seminário, entende
que as crianças precisam de fazer desporto e de estar com amigos, não de forma
virtual, mas real: “Para não serem privados da brincadeira, para serem
introduzidos à frustração do ‘quero brincar a isto’, ‘agora não, vamos brincar
àquilo’”, diz, frisando que a interacção com o outro, frente a frente, permite
gerir emoções, incluindo as de desagrado.
Admite que os pais
trabalham muito e que, quando chegam a casa têm “pouca disponibilidade
interior”, mas insiste que “vale a pena” não ceder ao comodismo de pôr as
crianças em frente à televisão ou com um tablet nas mãos. A
leitura de um livro, por exemplo, ao obrigar a criança a imaginar, a construir
mentalmente as imagens, vai permitir uma “apropriação” daquele conteúdo “mais
duradoura”. Também o psiquiatra Luís Patrício, director da Unidade de Patologia
Dual da Casa de Saúde de Carnaxide, defendeu que “vale a pena ler um livro,
folheá-lo, é uma relação mais quentinha”.
Apesar de ser um
tema ainda em estudo, Pedro Cabral acredita que crianças que passam muito tempo
a ver televisão têm um tempo de concentração menor, porque se muda de cenário
muito rapidamente. O mesmo vale para um ecrã de computador, porque a nossa
atenção está exposta a “estímulos fragmentados”.
“Há cada vez mais
pessoas a perguntarem se o nosso cérebro e a nossa atenção estão a mudar. Eu
creio que a civilização da imagem e do audiovisual modificou a maneira como nos
apropriamos da informação, e os miúdos também. Nos ecrãs, a leitura é muito
mais rápida. Não tem o tempo de ler dos livros, é uma velocidade diferente. E,
tal como os polegares que têm nesta geração mais representação, também pode
haver mudanças no cérebro”, defende.
Tudo isto pode ter
influência na forma como as crianças se portam na escola, como se concentram,
ou não, a ler um livro ou a ouvir um professor falar uma hora seguida? “Penso
que sim. É preciso criar essa disponibilidade para ouvir, criar hábitos de
ouvir, de expor, de contar uma história”, diz o neuropediatra, notando que
hoje, com as novas tecnologias, “as pessoas estão impacientes, à espera de uma
resposta [que chega à distância de um clique]”.
Augusto Consoli, do
Departamento de Patologia das Dependências de Turim, Itália, também concorda
que a rapidez com a qual se lêem conteúdos no computador, nos smartphones,
e-mails ou redes sociais, interrompendo as leituras e saltando da Wikipédia
para o Google e, depois, para o Facebook, é um modo de fruição fragmentada e
rápida que, entre outros aspectos, pode representar uma forma de atenção pouco
contínua e reflexiva.
“Hora do apagão”
Desligar tudo lá em casa – computadores, telemóveis, televisão – e
conversar, é uma das “tarefas terapêuticas” que o psicólogo João Faria, que
assistiu ao simpósio, propõe aos pais que têm em casa crianças e adolescentes
que não dormem, não comem, faltam ou recusam ir à escola, que nem vão à casa de
banho, fazendo as necessidades em frente ao computador, só para jogarem em
rede. Diante desta “hora do apagão” não são só as crianças que ficam “aflitas”,
os pais também.
Se nos adolescentes
o absentismo chega a ser um problema, nas crianças o que acontece é os pais
pensarem que estão no quarto a dormir quando, na realidade, estão a jogar:
“Como é um jogo mundial, às vezes começam a jogar quando os miúdos nos Estados
Unidos chegam a casa. Ficam com os padrões de sono perturbados, o que provoca
fraco rendimento escolar”.
E a irritabilidade
com que chegam às aulas pode dever-se não só à falta de sono, mas também aos
conflitos em casa, porque os pais ralham, desligam as fichas ou proíbem os
jogos. A solução está fora do ecrã: “O desporto, a música, a leitura devem ser
alimentadas desde logo, até para ajudar a criança a conhecer-se a si própria.
Muitos destes jovens dizem que querem ser programadoras de jogos informáticos,
porque é o que conhecem. E depois apanham uma desilusão quando vão para os
cursos profissionais de informática”, conclui o psicólogo.
Fonte: Jornal Público, 21/01/2013
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